domingo, 24 de outubro de 2010

Até o inferno

"Christine Brown tinha um bom emprego, um excelente namorado, e um brilhante futuro... 
Mas em três dias era irá para o inferno."


Um retorno as origens do diretor Sam Raimi (de Uma Noite Alucinante , 1981 e o Dom da Premonição, 2000), após anos envolvido com a megaprodução de Homem-Aranha. Um retorno com um gostinho do tradicional e do clássico.

Arraste-me para o Inferno (Drag me to Hell, 2009) não é um filme excelente, ele tem bastante erros considerados grotescos, como exageros em CG (computação gráfica), discrepâncias na sequencia das cenas (a protagonista é encharcada por gosma e em seguida aparece nem sequer molhada ou suja), efeitos sonoros meio olds, mas, acreditem, é esse conjunto da obra que dá um certo charme a esse longa. Um charme nem um pouco trash.

Para quem gosta de terror é possível sentir esses elementos talvez colocados propositalmente pelo diretor para criar um efeito parecido com os de filmes antigos, que abusavam um pouquinho do exagero (fosse com efeitos especiais ou sonoros ou o suspense do tipo “pular da cadeira”), mas ele acertou na mão. Tem filmes recentes que tentam usar de artificies tradicionais para criar esses efeitos, porém levando isso muito a sério (realmente sustentando a historia sob isso) e não dá certo, o resultado é bem desastroso (estou me lembrando de alguns, mas são tão ruins que não vale a pena nem citar). Raimi fez isso sem pretensões, como se para ver se ainda tinha jeito com a coisa, salpicando a historia com essas referencias clássicas. Ficou muito bom.

Sobre a historia: Eu não botava muita fé no inicio, na verdade a historia segue um rumo mais ou menos predestinado, só não podemos imaginar que vai ser tão ruim pra personagem principal, Christine Brown (Alison Lohman), uma bela e meiga  bancaria que busca uma promoção e para impressionar o chefe (e ficar mais perto de ser promovida) nega a prorrogação da hipoteca da Sra. Ganush (Lorna Raver), uma velha cigana muito sinistra (e, porque não, asquerosa). Quando a senhora ajoelha-se, implorando por ajudar, a garota acaba humilhando-a, desconcertada com a situação.  Ela não podia imaginar que tal confusão lhe traria sérias consequências.
Numa cena bastante forte e frenética, ela é atacada, depois do expediente, pela velha, que lhe toma um botão do casaco e o amaldiçoa (amaldiçoando assim o seu dono também). A partir dai a vida da menina vira um inferno. Não há paz em nenhum lugar que vai e tudo o que faz acaba por dar errado.  Seus infortúnios são de dar dó e asco, além de serem surpreendentes.

Maldições ciganas são barra pesada, mexem com entidades ocultas e poderosas, como o próprio ‘bode negro’, no filme chamado de "Lamia", mas na verdade se tratando do deus oculto Baphomet (aquele costumeiramente usado pela igreja católica para figurar Lúcifer, um ser com cabeça de bode, uma mão apontando para cima, a outra para baixo, mas que nada tem a ver com o anjo caido da Bíblia). Parece até um pouco engraçado a figura literal do bode, mas esse símbolo clássico que poderia soar cafona em longas atuais consegue ter sua magia assustadora ao ser acrescentado em uma trama como a desse filme. Sempre aparecendo indiretamente, através de sombras chifrudas na parede, evidenciado no som de seus cascos pelo soalho, nas batidas categóricas em portas (que só a pessoa amaldiçoada consegue ouvir) e suas manifestações invisíveis de violência (e bota manifestações nisso, com direito a sacudir a moça pelo ar, jogando-a sem dó em todas as direções, quebrando o quarto todo, com a câmera acompanhando o olhar aterrorizado dela enquanto esta suspensa no ar. Nem Atividade Paranormal conseguiu ser tão autentico no quesito “puxão invisível pelo pé”).

Esse filme também foi comparado à obra (e filme) do Stephen King, A Maldição do Cigano (Thinner, 1984 - um livro que não é dos meus favoritos, mas também não é ruim) por ter em comum pragas rogadas por esses forasteiros supersticiosos. No caso da obra de SK, um advogado obeso é amaldiçoado por um cigano após ser inocentado do atropelamento de uma cigana. O sinistro destino do homem é emagrecer. Até certo ponto bom para um homem de silhueta avantajada, porém não tanto quando o emagrecimento não para nunca...

Em Arraste-me para o inferno, a cigana é de dar arrepios, uma figura clássica da bruxa velha que ira atormentar até depois da morte, sempre pegando de surpresa, aparecendo do nada, com sua carranca murcha e sobrenatural. Christine apela de todos os jeitos para se livrar da maldição, e sentimos, ao longo desses três dias fatidicos, até certa pena da personagem, pois a maldição transforma sua vida num caos,  tendo ela que fazer o que nem imaginava possível, e correr contra o tempo atrás das coisas mais funestas, pois Lamia virá buscar sua alma. Literal e pessoalmente.

Destaque para a sequencia em que tentando conjurar o espirito blasfemo, ele passa de um corpo para o outro, em referencias cada vez mais clássicas de historias sobre entidades diabólicas. Primeiro a médium que o recepciona, com risadas e um humor acido de arrepiar. Depois para o bode que, ao tê-lo em seu corpo começa a falar, com olhos quase humanos (brrrr....o bode ficou perfeito) e depois para o assistente que deveria matar o bode com o espirito ruim dentro, mas só consegue fazê-lo passar também para o seu corpo depois de uma bela dentada. Dentro de um corpo masculino ele deita e rola suspenso e dançando no ar, blasfemando sarcasticamente a tentativa de detê-lo (como boas historias do tipo, os demônios gostam de “brincar” com o terror que causam nos humanos, como um gato brincando com a pressa indefesa, antes de lhes devorar).
Somos surpreendidos em até onde a protagonista consegue ir para tentar deter a maldição que se consumará ao raiar do terceiro dia. Quantas escolhas ela deve fazer, o quão bizarra é sua determinação nelas.

E como é muito comum, maldições são difíceis de serem quebradas. Ou você destrói o algoz, ou passa ela adiante, amaldiçoando assim outra pessoa (lembre-se da fita amaldiçoada de O Chamado). Quando Christine leva seu objeto amaldiçoado para dar ele a alguém, somos levados a acreditar que ela irá mesmo se sair bem. Afinal, coitada, ela sofreu o filme todo e quase foi pro saco faltando muito pouco. Mas filmes de maldições (historias de maldições, lembra do A Pata do Macaco e o conto da Lauren Myracle em Formaturas Infernais?) não são dadas a finais felizes. Nada felizes. O que proporcionou um desfecho soberbo nesse retorno básico de Sam Raimi ao gênero que o consagrou.

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