Mostrando postagens com marcador Textos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Textos. Mostrar todas as postagens

sábado, 9 de fevereiro de 2013

O demônio e o tempo


Me enviaram este texto e achei interessante. Acho que tem é uma leitura para se pensar.





O OUTRO  - Neil Gaiman


-O tempo é fluído aqui - disse o demônio.

       Ele soube que era um demônio no momento em que o viu. Assim como soube que ali era o inferno. Não havia nada mais que um ou outro pudessem ser.
       A sala era comprida e na outra extremidade o demônio o esperava ao lado de um braseiro fumegante. Uma grande variedade de objetos pendia das paredes cinzentas, cor de pedra, do tipo que não parecia sensato ou reconfortante inspecionar muito perto. O pé-direito era baixo e o chão, estranhamente diáfano.

       -Chegue mais perto - ordenou o demônio, e ele se aproximou.

       O demônio era esquelético e estava nu. Tinha cicatrizes profundas, que pareciam frutos de um açoite ocorrido num passado distante. Não tinha orelhas nem sexo. Os lábios eram finos e ascéticos, e os olhos condiziam com os de um demônio: tinha ido longe demais e visto mais do que deveriam. Sob aquele olhar, ele se sentia menos importante do que uma mosca.

       -O que acontece agora? - ele perguntou.

       -Agora - disse o demônio com uma voz que não demonstrava sofrimento nem deleite, somente uma horripilante e neutra resignação - você será torturado.

       -Por quanto tempo?

       O demônio balançou a cabeça e não respondeu. Ele percorreu lentamente a parede, examinando uma a um os instrumentos ali pendurados. Na outra extremidade, perto da porta fechada, estava um açoite feito de arame farpado. O demônio o apanhou com uma de suas mãos de três dedos e retornou, carregando-o com reverência até o outro lado da sala. Pôs as pontas de arame sobre o braseiro e observou enquanto se aqueciam.

       -Isso é desumano.

       -Sim.

       As pontas do açoite ganharam um brilho alaranjado.
       Quando ergueu o braço para dar o primeiro golpe, o demônio disse:

       -No futuro você sentirá saudades deste momento.

       -Você é um mentiroso.

       -Não - respondeu o demônio. - A próxima parte é ainda pior - explicou, pouco antes de descer o açoite.

       As pontas do açoite atingiram as costas do homem com um estalo e um chiado, rasgando-lhe as roupas claras. Elas queimavam, cortavam e estraçalhavam tudo o que tocavam. E, não pela última vez naquele lugar, ele gritou;
       Duzentos e onze instrumentos repousavam nas paredes da sala e, com o tempo, ele experimentou cada um deles.
       Por fim, a filha do Lazareno, que ele acabou conhecendo intimamente, foi limpa e recolocada na parede na duocentésima décima primeira posição. Nesse momento, por entre os lábios rachados, ele soluçou:

       -E agora?

       -Agora começa a dor de verdade - informou o demônio.

       E começou mesmo.
       Cada coisa que ele fizera e que teria sido melhor não ter feito. Cada mentira que contara - a si mesmo ou aos outros. Cada pequena mágoa, e todas as grandes mágoas. Cada uma dessas coisas foi arrancada dele, detalhe por detalhe, centímetro por centímetro. O demônio descascava a crosta do esquecimento, tirava tudo até sobrar somente a verdade, e isso doía mais que qualquer outra coisa.

       -Conte o que você pensou quando a viu indo embora - exigiu o demônio.

       -Pensei que meu coração ia partir.

       - Não, não pensou - contestou o demônio, sem ódio. Dirigiu seu olhar sem expressão para o o homem, que se viu forçado a desviar os olhos.

       -Pensei: agora ela nunca saberá que eu dormia com a irmã dela.

       O demônio desconstruiu a vida do homem, momento por momento, um instante medonho após o outro. Isso levou cem anos ou talvez mil - eles tinham todo o tempo do universo naquela sala cinzenta. Lá pelo fim, ele percebeu que o demônio tinha razão. Aquilo era pior que a tortura física.

       Mas acabou.

       Só que, quando acabou, começou de novo. E com uma consciência de si mesmo que ele  não tinha da primeira vez, o que de certa forma tornava tudo ainda pior.
       Agora, enquanto falava, ele se odiava. Não havia mentiras nem evasivas, nem espaço para nada que não fosse dor e esquecimento.
       Ele falava. Não chorava mais. E, quando terminou, mil anos depois, rezou para que o demônio fosse até a parede e pegasse a faca de escalpelar, ou o sufocador, ou a morsa.

       -De novo - ordenou o demônio quando ele se calou, como se nada tivesse sido dito até então.

       Era como descascar uma cebola. Dessa vez, ao repassar sua vida, ele aprendeu as consequências. Percebeu os resultados das coisas que fizera; notou que estava cego quando tomou certas atitudes; tomou conhecimento das maneiras como infligira mágoas ao mundo; dos danos que causava a pessoas que jamais conhecera, encontrara ou vira. Foi a lição mais difícil até aquele momento.

       -De novo - ordenou o demônio, mil anos depois.

       Ele agachou no chão, ao lado do braseiro, balançando o corpo de leve, com os olhos fechados, e contou a história de sua vida, revivendo-a enquanto contava, do nascimento até a morte, sem mudar nada, sem omitir nada, enfrentando tudo. Abriu seu coração.
       Quando acabou, ficou ali sentado, de olhos fechados, esperando que a voz dissesse: "De novo". Porém, nada foi dito. Ele abriu os olhos.
       Lentamente, ficou de pé. Estava sozinho. Na outra ponta da sala havia uma porta, que enquanto ele olhava, se abriu.
       Um homem entrou. Havia terror em seu rosto, e também arrogância, e orgulho. O homem, que usava roupas caras, deu alguns passos hesitantes pela sala e parou.
       Ao ver o homem, ele entendeu:

       -O tempo é fluido aqui.
      
***********************************